
Terminar uma amizade do tipo tóxica implica em perigo semelhante a escolher qual fio corto pra desarmar a bomba ao meu lado. Estou falando de uma bomba amiga, para quem abrimos nossa cabeça, nosso coração, o passado, a vergonha, o vômito, a clandestinidade, a lista de contatinhos. E ela, explosiva que só, vai trabalhando feito um vulcão dedicado, cuspindo fogo pra anunciar que vai entrar em erupção e devastar sua cidade com uma bela nuvem de gases tóxicos de causar inveja no tio flatulento que abre a boca pra culpar o repolho enquanto bastaria evitar o “papo reto”, se é que me entende...

Faz dois anos que acabei com vinte anos de amizade e assino embaixo da decisão tomada por mim mesmo. Eu, que nunca mais vou beber entre o último porre e a próxima cerveja, que nunca mais volto a falar com aquele desgraçado até morrer de saudade desse homem da minha vida, que peço o bolo de nozes pra querer coisas salgadas quando ele estiver pronto, mantenho irrevogável o término da relação com minha amiga bomba.

Ex-amigo é tão estranho aos meus ouvidos (minha voz mental lê tudo o que escrevo pra me garantir ao menos um leitor) quanto ex-pai, ex-hipopótamo, ex-sábado à noite, ex-sorvete, ex-ex. Serve, no entanto, para enunciar a amizade interrompida quando os abalos sísmicos provocados por minha amiga terremoto foram subindo tanto a intensidade da voz na Escala Richter que o último áudio de WhatsApp me causou labirintite. E ela foi bloqueada porque eu queria parar de tremer.

Inimigo é alguém que você não resolveu e, portanto, que sinal ruim tê-lo! Entendido que o núcleo sou eu (estou descrevendo a estrutura da Terra, me pondo na posição nada arrogante de planeta), tenho amigos em uma posição magmática, do manto superior ao inferior, e convivências superficiais que, embora não conserve em profundidade, passeiam por mim. Ser golpeado por alguém que está por dentro de você é mais devastador que um ataque de zumbis na multidão de figurantes do filme dublado que dias depois ninguém lembra o nome.

Optei por dar final higiênico às duas décadas em que encarávamos a relação como vinho e tempo. “A mais antiga amiga que eu tenho”, dizia para os amigos recém-chegados na fila cronológica que, descobri muitos anos depois, não existe. Um feitiço me prendia à ideia de que desfazer a amizade seria murchar o valor das minhas memórias. E foi inexatamente o contrário: dar ponto ao final não apaga o texto, permite é mudar de parágrafo.

Amigos são espelhos que projetam uma imagem sobre você. Diga-me com quem andas, com quem deitas, com quem divides planos secretos, com que pegas um cineminha, com quens erras, que eu te direi quem tu és. O português do nosso diálogo foi ficando arcaico. Foi ficando, foi ficando, foi ficando... até que o sentido da fala grega com minha amiga brasileira se foi, ficando o preferível silêncio, sendo a outra opção suportar que ela tenha entrado em um almoço de domingo na minha família para questionar “feministicamente” meu pai por ter pedido uma colher de arroz para minha mãe que, tcharan!, estava sentada mais perto que ele da panela de arroz. “Por que você mesmo não coloca?” Por que eu mesmo não pedi que ela se retirasse de casa antes que, como sobremesa, passasse a me ridicularizar por permitir que minha mãe comprasse cuecas pra mim?

Fato é que, por ela, meus livros deveriam se enfileirar na subcategoria “literatura gay”, enquanto meu desejo (ainda que criando protagonistas homossexuais nos romances que fiz até agora) é transitar lato sensu pela literatura brasileira, que não deveria ser pensada em torno de personagens héteros que definam o que é “geral”. Da amiga que se deitou com o cara que eu mais gostava o que eu quero é:

*Luís Gustavo Rocha é jornalista, escritor e tem a memória ruim. Na TV, como editor de texto, já se esqueceu de colocar na matéria do telejornal o candidato a governador em segundo lugar nas pesquisas. Na newsletter, acabou se esquecendo que o padrão é colocar o último papel higiênico com uma mini biografia, que seria um textinho parecido com este parágrafo, só que menor ainda.
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👻 Não dá pra ter amigo imaginário na fase adulta sem ser examinado pelo psiquiatra, mas depois que li a pesquisa feita pela NatáliaBenincasa Velludo e pela Déborade Hollanda Souza com grupos de crianças, estou considerando montar na minha casa um quarto pro Lancelote.
😷 A Revista Isto É listou 13 tópicos que indicam a presença de toxinas na amizade. Dependendo do tanto de itens que você identificar nas relações que vive, mantenha o uso de máscara mesmo após a pandemia!

Ameeeey o texto. Realmente, amizade tóxica é uma bomba que temos que saber como desarmar. Recentemente passei por um caso parecido, precisamos sentar e conversar hehehe
e qdo a sua relação tóxica é com vc msm? (ainda tentando responder a pergunta do último texto rs)